Decisão de Partir
Trágica obsessão
Por Pedro Mesquita
Festival de Cannes 2022
A esta altura do campeonato, parece de comum acordo dizer que “Um Corpo Que Cai” (1958), de Alfred Hitchcock, é um dos maiores filmes da história do cinema. Como toda obra moderna, o filme de Hitchcock não deixa de ser um comentário sobre a própria imagem cinematográfica: sobre o seu caráter fugidio, impreciso. Scottie apaixona-se por uma imagem de Kim Novak e, diante da impossibilidade de reavê-la, enlouquece. “Um Corpo Que Cai” é um filme de detetive que questiona as próprias bases do filme de detetive na medida que a possível solução da trama nunca vem (e não pode vir) por meio da visão dos acontecimentos; esta, sempre comprometida de alguma maneira, incapaz de apreender a verdade das coisas.
O filme de Hitchcock não cansou de servir de inspiração a outros diretores ao longo da história do cinema: De Palma o fez bastante diretamente com “Trágica Obsessão” (1976); Christian Petzold — “Phoenix” (2012), “Em Trânsito” (2019) — retoma constantemente alguns dos temas-chave da obra; agora, Park Chan-wook é o mais novo diretor a apresentar uma história inspirada, direta ou indiretamente, no filme do diretor inglês.
“Decisão de Partir” compartilha com “Um Corpo Que Cai” o arranjo de seus personagens principais. Hae-jun (Park Hae-il) é um detetive que investiga a morte de um homem, cuja causa aparente é o suicídio. No entanto, a sua investigação o leva a suspeitar de Seo-rae (Tang Wei), a própria esposa desse homem. É neste momento que se inicia um problema que irá comprometer a plena solução do caso: após extensas sessões de interrogação e diversas noites vigiando a mulher sem o seu consentimento — temos aqui um outro tema hitchcockiano: o voyeurismo —, Hae-jun começa a se apaixonar pela própria mulher que ele investiga.
Aqui notamos uma cisão que acontece no filme: aquilo que parecia, até então, um tradicional whodunit — um filme de mistério centrado na solução de um crime — vai aos poucos ganhando contornos de drama romântico à medida que Hae-jun e Seo-rae passam a desenvolver uma relação. E o juízo de valor que fazemos dessas duas partes varia. Separamo-nas, portanto.
Enquanto procedural policial, “Decisão de Partir” é um filme competente. Esse lado do filme, representado sobretudo pela primeira metade da projeção, envolve com alguma habilidade o espectador nos pormenores do caso e no dilema moral que se apossa do detetive. Ele, no entanto, não o faz sem seus deslizes: a mise en scène de Park Chan-wook é pautada por um dinamismo exaustivo. Pulamos de uma cena à próxima sem respiro, as informações e as reviravoltas vão se acumulando sem o devido peso dramático… e, pior de tudo, algumas cenas padecem de uma decupagem exageradamente “virtuosa”: a cena do interrogatório entre Hae-jun e Seo-rae, por exemplo, é encenada com uma quantidade tão grande de planos — intercalados rapidamente pela montagem — que atinge um efeito talvez contrário ao esperado: a tensão dramática, ao invés de acumular, se dissipa a cada corte.
A ideia de Park Chan-wook parece ser a de, assim como o Hitchcock de “Um Corpo Que Cai”, investir o filme de uma encenação expressionista, que busca retratar o estado de espírito do seu protagonista em meio a um declínio mental. Mas algumas escolhas de decupagem parecem, francamente, tomadas antes por mera vaidade que pelo seu potencial expressivo. O uso constante de sofisticados planos-sequência subjetivos que ilustram o raciocínio de Hae-jun ao desvendar alguma charada; os recorrentes planos que mostram o ponto de vista do celular de Hae-jun enquanto ele o controla; certos movimentos de câmera rebuscados e certas transições entre as cenas… sentimos a excelência técnica, mas não a emoção que ela deveria suscitar.
Talvez seja por isso, por essa falta de emoção, que o aspecto romântico do filme — o seu segundo lado, por assim dizer — nunca pareça completamente convincente. “Decisão de Partir” nos apresenta a ideia de um romance que nunca é devidamente atualizada em imagens, pois as personagens sempre aparentam frias, reservadas, desconfiadas demais, pouco suscetíveis ao amor que os diálogos sugerem. As poucas cenas de intenção cômica não obtêm o devido efeito, pois não coexistem pacificamente com o resto do filme. Eis, enfim, um conflito de tons que a direção de Park não faz a menor questão de apaziguar.
“Decisão de Partir” é, portanto, uma experiência complexa: narrativamente denso e tecnicamente virtuoso, ele poderá encantar aos fãs que dele esperam exatamente isso. Mas, em matéria de filme policial, Park Chan-wook perde para o seu compatriota Bong Joon-ho e o superior “Memories of Murder” (2003); já em matéria de filmes sobre a obsessão masculina diante da mulher amada, ele sequer chega aos pés de Hitchcock.